Na Idade Média, tendo os feudos como característica emblemática do período, surge a primeira manifestação lírica que “chega a Portugal e ganha um novo revestimento. Entre 1198 e 1418, acontece o Trovadorismo que, por sua vez, é a tradição mais antiga da lírica portuguesa.” (SILVA, 2014, p.32). Entretanto, a poesia trovadoresca não surgiu em Portugal, visto que este país estava em processo de formação, sendo assim, é oriundo, na verdade, da França, pois é da “Provença que vem o influxo próximo. Aquela região meridional da França tornara-se, no século XI, um grande centro de atividade lírica, à mercê das condições de luxo e fausto oferecidas aos artistas pelos senhores feudais” (MOISÉS, 1983, p. 24). Ao adentrar em território português, a lírica provençal une-se à tradição e à cultura portuguesa, auxiliando no processo de aquisição da poética medieval. Dessa forma, a poesia poderia propor uma representação tanto das informações e das vivências palacianas quanto da vida dos povos do campo. À vista disso, surge a necessidade de uma nova maneira de cantar na Idade Média, com o propósito de consolidar duas líricas, visto que teria como proposta representar a vida palaciana e a outra para interagir com o cotidiano da população que circundava os feudos, sobremaneiramente, nota-se o surgimento de uma divisão hierárquica na poética medieval.
A hierarquização da estrutura lírica medieva veio na necessidade de separar a saudade da amiga/amante – que era camponesa e, provavelmente, ribeirinha – dos amores idealizados do trovador que declara o seu amor a uma dama – que não era camponesa e tinha uma moradia nobre – logo, ora teríamos um pano de fundo no ambiente campesino ora no palaciano. Com isso, a composição e a estrutura lírica do período medieval consistiam em temas amorosos sejam eles para representar a saudade pela dor do abandono ocasionado pelo amigo/amante que se foi depois da realização da coita ou pela vassalagem amorosa proveniente de um amor irreal/platônico. Dessarte, esses temas permitiram que surgissem duas maneiras de cantar na Idade Média sendo nomeadas, na época, de Cantigas de Amigo e Amor.
as cantigas de amor, as quais o cavalheiro dirige à mulher amada como uma figura idealizada tornando esse amor impossível e as cantigas de amigo, que são de origem popular e apresentam marcas da literatura oral, recursos muito usados, ainda hoje, nas canções populares. Este tipo de cantiga teve suas origens na Península Ibérica. Embora o eu - lírico fosse feminino, o autor era masculino. Encontramos nessas composições referências sobre o amor a um amigo – namorado – que se encontra distante. (MENEZES, 2012, p. 4).
Isso posto, o período medieval consistia em uma cultura oral, logo todas as informações culturais, leis e outras instâncias, eram transmitidas através da oralidade, pois ainda não existia a imprensa que permitisse a difusão de informações e conhecimento escrito. Outrossim, o nome cantiga advinha do fato de que a poesia era cantada, com versos ritmados e acompanhados de instrumentos que proporcionavam a musicalidade e devido à grande proximidade entre Galiza e Portugal, as primeiras produções poéticas eram classificadas como galego-portuguesa, pois:
Em virtude da então unidade lingüística entre Portugal e a Galiza, o idioma empregado era o galego-português. As produções poéticas implicavam uma estreita aliança entre a poesia, a música, o canto, a dança, daí o nome cantiga, sempre com acompanhamento musical, mais precisamente, instrumentos de corda como: viola, alaúde, harpa, saltério, entre outros. A presença de refrão, nessas poesias, atesta a presença de um coro, portanto não podemos pensar nessas poesias medievais sem o acompanhamento musical. As poesias nada mais são do que canções, versos cantados. (ALGERI, 2007, p. 3).
Os acompanhamentos musicais, as produções poéticas e canções com versos cantados dialogam com as características do baiano Elomar Figueira Mello. Elomar apresenta em seu tempo e em seu espaço, o violeiro, este que busca versejar sobre os acontecimentos que ocorrem em suas andanças e vivências no sertão nordestino. Dessa maneira, a interação entre alaúde e viola, cantigas medievais e canções nordestina se relacionam em um diálogo intertextual entre a maneira de cantar na Idade Média e a de Elomar no sertão nordestino. Por conseguinte, o intertexto é responsável pelo o dialogismo presente nos textos mesmo sendo produzidos em épocas e lugares diferentes.
Diante disso, a intertextualidade surge como manifesto, em 1969, através de sua idealizadora Júlia Kristeva, com o intuito de refletir sobre os conhecimentos adquiridos para se produzir novos textos, portanto, a intertextualidade literária pode ser caracterizada como um entrelaçamento textual, isto é, onde “a obra literária se interliga com outras obras, formando elos de uma infindável corrente que é notável, em todos os períodos da literatura.” (CORRALES, 2010, p.6).
Consequentemente, no diálogo entre o nordestino Elomar e a poética medieval, a intertextualidade não se apresenta como cópia do passado ou com a finalidade de negá-la, senão de servir como artifício de repactuação literária e, dessa forma, retrata o presente do sertanejo apresentando uma nova roupagem as suas canções, sem que desvinculem das características trovadorescas, mas procurando reatualizar o modo de trovar dos medievos e buscando introduzir, na sua maneira de cantar, os acontecimentos que ocorrem no sertão nordestino e as aventuras do violeiro. Sendo assim, o violeiro elomariano executa a mesma função dos trovadores, pois, assim como estes, ele possibilita ao seu povo o conhecimento da própria cultura, religião, costumes, venturas e desventuras que desvendam nas suas vivências.
Ao violeiro cabe falar da sua própria terra, dos amores, das descobertas, das aventuras e desventuras que ocorrem em suas andanças pelo sertão. Ele se assegura na fé, na liberdade de cantar sertão a fora e, principalmente, não ser escravo do dinheiro. Na canção “O Violêro” Elomar evidencia:
Vô cantá no canturi primero
as coisa lá da minha mudernage
qui mi fizero errante e violêro
eu falo séro i num é vadiagem
i pra você qui agora está mi ôvino
juro inté pelo Santo Minino
Vige Maria qui ôve o qui eu digo
si fô mintira mi manda um castigo
Apois pro cantadô i violeiro
só hai treis coisa nesse mundo vão
amô, furria, viola, nunca dinheiro
viola, furria, amô, dinhêro não [...]
Deus feiz os homi e os bichos tudo fôrro
já vi inscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado [...].
(MELLO, in Porteira Oficial de Elomar, 2007).
as coisa lá da minha mudernage
qui mi fizero errante e violêro
eu falo séro i num é vadiagem
i pra você qui agora está mi ôvino
juro inté pelo Santo Minino
Vige Maria qui ôve o qui eu digo
si fô mintira mi manda um castigo
Apois pro cantadô i violeiro
só hai treis coisa nesse mundo vão
amô, furria, viola, nunca dinheiro
viola, furria, amô, dinhêro não [...]
Deus feiz os homi e os bichos tudo fôrro
já vi inscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado [...].
(MELLO, in Porteira Oficial de Elomar, 2007).
No começo da canção, Elomar já exprime qual a sua intenção que, neste caso, seria tecer sobre os ensinamentos do eu lírico para se viver na modernidade. Esta lhe mostrou que a vida é bem mais que dinheiro. Ele então se apoia a bíblia sentenciando que todos os seres vivos são livres e, com isso, ele conclama a liberdade e o amor, como uma nova maneira de viver na modernidade. Em vista disso, cabe ao violeiro, segundo a canção, Amô que faz referência aos amores que encontra na sua caminhada, furria que seria a liberdade, viola para sonorizar o que será cantado e nunca dinheiro, visto que desfrutar de menos dinheiro, seria o mesmo que ter mais fortuna em relação à vida e possuir uma maior liberdade poética, uma vez que o violeiro não deve se preocupar com bens financeiros, já que a sua única riqueza é ser livre para cantar e seguir qual rumo queira.
Mediante a isso, o violeiro elomariano pode ser comparado ao segrel da Idade Média, este tinha como propósito ir de terra em terra desempenhando a função de trovador recitando e ou cantando suas composições, porém, enquanto o eu lírico de Elomar, como mencionado na canção supracitada, não tem preocupações com bens financeiros, o Segrel cantava por intermédio do dinheiro. Posto isso, pode-se dizer que Elomar é considerado um Menestrel, sendo este um bardo cujo desempenho lírico era tecer cantigas sobre histórias do seu povo e de lugares distantes ou sobre eventos históricos reais ou imaginário. Portanto, Elomar não se enquadra as características dos cavaleiros andantes, pois ele, segundo Simões, é “um peleador que persegue um ideal de mundo que valoriza as coisas simples, a natureza, as criações divinas. Sua cantoria traz à cena o homem rude do sertão, suas agruras, sua abnegação a um destino de luta e eterno recomeço” (2006, p. 29). Por isso, a cantoria elomariana reproduz os acontecimentos da sua realidade e, então, como compositor de suas canções, Elomar pode ser, também, comparado a um trovador, cuja função era compor cantigas para serem apresentadas dentro dos feudos. Diante desses fatos, as canções elomarianas assumem um papel divergente das características poéticas dos medievos no diz respeito à maneira de como era “poetado” na Idade Média.
Antes é necessário entender que as Cantigas de Amor são aquelas que expressam os sentimentos do eu lírico masculino pela mulher da nobreza. A senhora, assim chamada nas cantigas em questão, é quase elevada ao plano espiritual sendo exaltada suas qualidades e virtudes, consequentemente, ela é uma mulher que faz parte da aristocracia feudal. Já as Cantigas de Amigos evocam uma voz feminina que discorre sobre suas angústias, saudades e frustrações amorosas. Nelas são encontrados o amor real, a esperança pela voltada do amado e, às vezes, a representação da angústia pelo abandono. “Ao contrário da cantiga de amor, o sentimento aqui é espontâneo, natural e primitivo: a mulher que se entrega de corpo e alma a essa paixão incompreendida e acaba sendo abandonada pelo seu amado” (ALGERI, 2007, p.7). Como discorre Algeri, a voz feminina se encontra presente nesse plano amoroso, entretanto, Elomar inverte a voz do eu lírico como forma de expor o sentimentalismo de sofrimento do violeiro nordestino. Diferente da cantiga de amigo do Trovadorismo que canta a fala da mulher abandonada pelo seu homem, e este que sempre promete ficar ao seu lado, mas a abandona e a deixa a chorar, nas canções elomarianas, a amiga é quem parte e deixa o violeiro a sofrer e, para aliviar o seu sofrimento, ele canta sobre o abandono, mesmo que esteja na esperança de um possível retorno da sua amada. Assim como elucida Silva que:
Nessa vertente dialógica entre as vozes sociais do Nordeste e da Idade Média, insere-se a inversão do eu-lírico, ou seja, enquanto nas Cantigas de Amigo se supõe a fala da mulher clamando pelo homem, que por sua vez iludiu dizendo que a amava e ficaria para sempre ao seu lado e depois a abandona; nas cantigas de Elomar, a amiga é quem parte e deixa o violeiro a chorar/cantar passivamente esperando retorno da amada. (2014, p. 35 e 36).
Diante do que foi supracitado, o poeta evidencia o cotidiano do nordestino e o que antes era sofrido pela mulher nas cantigas trovadorescas é reelaborada nas canções elomarianas, pois agora a dor do abandono ressurge com uma voz masculina e quem sofre a perda do amor é o homem nordestino. Assim como é cantado na canção Cantiga de amigo:
Vão cantar louvando você.
Em cantigas de amigo, cantando comigo,
Somente porque, você é,
Minha amiga mulher,
Lua nova do céu que já não me quer.
Dezessete é minha conta,
Minha amiga conta
Uma coisa linda pra mim;
Conta os fios dos seus cabelos,
Sonhos e anelos,
Conta-me se o amor não tem fim
Madre amiga é ruim
Me mentiu jurando amor que não tem fim. [...].
Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros,
Iluminam a sala de amor;
Sete violas em clamores, sete cantadores
São sete tiranas de amor, para amiga em flor
Que partiu e até hoje não voltou.(MELLO, Das barrancas do rio Galvão Oficial de Elomar, 1972).
Em cantigas de amigo, cantando comigo,
Somente porque, você é,
Minha amiga mulher,
Lua nova do céu que já não me quer.
Dezessete é minha conta,
Minha amiga conta
Uma coisa linda pra mim;
Conta os fios dos seus cabelos,
Sonhos e anelos,
Conta-me se o amor não tem fim
Madre amiga é ruim
Me mentiu jurando amor que não tem fim. [...].
Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros,
Iluminam a sala de amor;
Sete violas em clamores, sete cantadores
São sete tiranas de amor, para amiga em flor
Que partiu e até hoje não voltou.(MELLO, Das barrancas do rio Galvão Oficial de Elomar, 1972).
Portanto, no fragmento da canção é possível analisar que apesar do nome ser “Cantiga de Amigo”, ela se diferencia do estilo paralelístico, visto que, nesse tipo de cantiga, costuma-se apresentar uma voz feminina e, entretanto, nesta canção tem-se uma voz masculina que se junta a outros cantadores na “Casa dos Carneiros” para louvar a amiga mulher que partiu. Assim sendo, Elomar apresenta uma inversão lírica, nela propõe a partida da amada e o eu lírico sofre o abandono. No seu sofrimento, ele deixa subentendido que até procurou sua amada, mas que ela já não o quer mais e afirma que ela mentiu para ele, pois jurava um amor eterno, mas que, mesmo assim, o abandonou e ele ficou a chorar/cantar ao redor de sete cantadores na sala da Casa dos Carneiros. Assim sendo, em uma análise comparativa com o trovadorismo, no excerto citado anteriormente, Elomar diz que louvará a sua amada em Cantiga de Amigo justamente para retratar a perda da sua amiga/amante, mas a voz que é apresentada na canção é masculina diferentemente de como era cantado na Idade Media que, por mais que fosse um homem que cantasse, o sentimento que era expressado na canção era de uma mulher que sofria pelo abandono do seu amado.
REFERÊNCIAS:
LITERATURA DE CORDEL E A MÚSICA CONTEMPORÂNEA / Nelvi Malokowsky Algeri; orientadora Elizabete Arcalá, São Paulo, 2007. Disponível no endereço eletrônico <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/810-4.pdf> Acessado em Setembro de 2019.
CORRALES, Luciano, A INTERTEXTUALIDADE E SUAS ORIGENS. Porto Alegre: Pucrs, 2010. Disponível no endereço eletrônico <http://editora.pucrs.br/anais/Xsemanadeletras/comunicacoes/Luciano-Corrales.pdf> Acessado em agosto de 2019.
MELLO, Elomar Figueira. CANTORIA 1 OFICIAL DE ELOMAR. Disponível no endereço eletrônico: < www.elomar.com.br > Acessado em agosto de 2019.
MELLO, Elomar Figueira. PORTEIRA OFICIAL DE ELOMAR. Disponível no endereço eletrônico: < www.elomar.com.br > Acessado em agosto de 2019.
MENEZES, Valéria Queiroz, A LÍRICA TROVADORESCA NA CANTORIA NORDESTINA: ELOMAR E A SAGA DOS VIOLEIROS. Trabalho apresentado na Universidade estadual de Santa Cruz – UESC e no V SETIL – Seminário de Teoria e História Literária – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, 2012. Disponível no endereço eletrônico < http://missdaisyarteeliteratura.blogspot.com/2012/09/a-lirica-trovadoresca-na-cantoria.html> Acessado em agosto 2019
MOISÉS, Massaud. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 1983. Disponível no endereço eletrônico < http://files.mundo-inteligente.webnode.com.br/200000006-d8c35d9c05/A%20Literatura%20Portuguesa.%20MOISES,%20Massaud.pdf> Acessado em agosto de 2019.
SILVA, Tatiana Cíntia da, O SERTÃO ENCANTADO PELO AEDO ELOMAR: METÁFORAS DA SAUDADE / Tatiana Cíntia da Silva; orientadora Jacqueline Ramos. – São Cristóvão, 2014. Disponível no endereço eletrônico <https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/11216/2/TATIANA_CINTIA_SILVA.pdf> Acessado em julho de 2019.
SIMÕES, Darcilia. LÍNGUA E ESTILO DE ELOMAR / (org.); Luiz Karol & Any Cristina Salomão — Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. Disponível no endereço eletrônico: < http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/elomar2006_01.pdf > Acessado em setembro de 2019.
Capítulo 1: A CANTORIA ELOMARIANA: RESGATE LÍRICO DO AEDO MEDIEVAL EM UMA PERSPECTIVA DE DIALOGISMO; Artigo elaborado por Yuri de Abreu Santos (PIC / NELL / FPD); Orientadora Tatiana Cíntia Silva.
Informações do autor: Graduando do Curso de Letras Português/Espanhol da Faculdade Pio Décimo (FDP), aluno-pesquisador do Projeto de Iniciação Científica (PIC) através do Núcleo de Estudos em Literatura do curso de Letras (NELL), Linha de Pesquisa: Literatura, Regionalismo, Memória e Ensino, orientado pela professora Mestra Tatiana Silva.
E-mail para contato: yurideabreu3215@gmail.com