segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O dialogismo entre arte de cantar na Idade Média e as canções de Elomar Figueira Mello

Na Idade Média, tendo os feudos como característica emblemática do período, surge a primeira manifestação lírica que “chega a Portugal e ganha um novo revestimento. Entre 1198 e 1418, acontece o Trovadorismo que, por sua vez, é a tradição mais antiga da lírica portuguesa.” (SILVA, 2014, p.32). Entretanto, a poesia trovadoresca não surgiu em Portugal, visto que este país estava em processo de formação, sendo assim, é oriundo, na verdade, da França, pois é da “Provença que vem o influxo próximo. Aquela região meridional da França tornara-se, no século XI, um grande centro de atividade lírica, à mercê das condições de luxo e fausto oferecidas aos artistas pelos senhores feudais” (MOISÉS, 1983, p. 24).  Ao adentrar em território português, a lírica provençal une-se à tradição e à cultura portuguesa, auxiliando no processo de aquisição da poética medieval. Dessa forma, a poesia poderia propor uma representação tanto das informações e das vivências palacianas quanto da vida dos povos do campo. À vista disso, surge a necessidade de uma nova maneira de cantar na Idade Média, com o propósito de consolidar duas líricas, visto que teria como proposta representar a vida palaciana e a outra para interagir com o cotidiano da população que circundava os feudos, sobremaneiramente, nota-se o surgimento de uma divisão hierárquica na poética medieval.
A hierarquização da estrutura lírica medieva veio na necessidade de separar a saudade da amiga/amante – que era camponesa e, provavelmente, ribeirinha – dos amores idealizados do trovador que declara o seu amor a uma dama – que não era camponesa e tinha uma moradia nobre – logo, ora teríamos um pano de fundo no ambiente campesino ora no palaciano. Com isso, a composição e a estrutura lírica do período medieval consistiam em temas amorosos sejam eles para representar a saudade pela dor do abandono ocasionado pelo amigo/amante que se foi depois da realização da coita ou pela vassalagem amorosa proveniente de um amor irreal/platônico. Dessarte, esses temas permitiram que surgissem duas maneiras de cantar na Idade Média sendo nomeadas, na época, de Cantigas de Amigo e Amor.
 as cantigas de amor, as quais o cavalheiro dirige à mulher amada como uma figura idealizada tornando esse amor impossível e as cantigas de amigo, que são de origem popular e apresentam marcas da literatura oral, recursos muito usados, ainda hoje, nas canções populares. Este tipo de cantiga teve suas origens na Península Ibérica. Embora o eu - lírico fosse feminino, o autor era masculino. Encontramos nessas composições referências sobre o amor a um amigo – namorado – que se encontra distante. (MENEZES, 2012, p. 4).
Isso posto, o período medieval consistia em uma cultura oral, logo todas as informações culturais, leis e outras instâncias, eram transmitidas através da oralidade, pois ainda não existia a imprensa que permitisse a difusão de informações e conhecimento escrito. Outrossim, o nome cantiga advinha do fato de que a poesia era cantada, com versos ritmados e acompanhados de instrumentos que proporcionavam a musicalidade e devido à grande proximidade entre Galiza e Portugal, as primeiras produções poéticas eram classificadas como galego-portuguesa, pois:
 Em virtude da então unidade lingüística entre Portugal e a Galiza, o idioma empregado era o galego-português. As produções poéticas implicavam uma estreita aliança entre a poesia, a música, o canto, a dança, daí o nome cantiga, sempre com acompanhamento musical, mais precisamente, instrumentos de corda como: viola, alaúde, harpa, saltério, entre outros. A presença de refrão, nessas poesias, atesta a presença de um coro, portanto não podemos pensar nessas poesias medievais sem o acompanhamento musical. As poesias nada mais são do que canções, versos cantados. (ALGERI, 2007, p. 3).
Os acompanhamentos musicais, as produções poéticas e canções com versos cantados dialogam com as características do baiano Elomar Figueira Mello. Elomar apresenta em seu tempo e em seu espaço, o violeiro, este que busca versejar sobre os acontecimentos que ocorrem em suas andanças e vivências no sertão nordestino. Dessa maneira, a interação entre alaúde e viola, cantigas medievais e canções nordestina se relacionam em um diálogo intertextual entre a maneira de cantar na Idade Média e a de Elomar no sertão nordestino. Por conseguinte, o intertexto é responsável pelo o dialogismo presente nos textos mesmo sendo produzidos em épocas e lugares diferentes.
Diante disso, a intertextualidade surge como manifesto, em 1969, através de sua idealizadora Júlia Kristeva, com o intuito de refletir sobre os conhecimentos adquiridos para se produzir novos textos, portanto, a intertextualidade literária pode ser caracterizada como um entrelaçamento textual, isto é, onde “a obra literária se interliga com outras obras, formando elos de uma infindável corrente que é notável, em todos os períodos da literatura.” (CORRALES, 2010, p.6).
 Consequentemente, no diálogo entre o nordestino Elomar e a poética medieval, a intertextualidade não se apresenta como cópia do passado ou com a finalidade de negá-la, senão de servir como artifício de repactuação literária e, dessa forma, retrata o presente do sertanejo apresentando uma nova roupagem as suas canções, sem que desvinculem das características trovadorescas, mas procurando reatualizar o modo de trovar dos medievos e buscando introduzir, na sua maneira de cantar, os acontecimentos que ocorrem no sertão nordestino e as aventuras do violeiro. Sendo assim, o violeiro elomariano executa a mesma função dos trovadores, pois, assim como estes, ele possibilita ao seu povo o conhecimento da própria cultura, religião, costumes, venturas e desventuras que desvendam nas suas vivências.
Ao violeiro cabe falar da sua própria terra, dos amores, das descobertas, das aventuras e desventuras que ocorrem em suas andanças pelo sertão. Ele se assegura na fé, na liberdade de cantar sertão a fora e, principalmente, não ser escravo do dinheiro. Na canção “O Violêro” Elomar evidencia:
Vô cantá no canturi primero
as coisa lá da minha mudernage
qui mi fizero errante e violêro
 eu falo séro i num é vadiagem
 i pra você qui agora está mi ôvino
 juro inté pelo Santo Minino
Vige Maria qui ôve o qui eu digo
 si fô mintira mi manda um castigo
 Apois pro cantadô i violeiro
 só hai treis coisa nesse mundo vão
 amô, furria, viola, nunca dinheiro
 viola, furria, amô, dinhêro não [...]
Deus feiz os homi e os bichos tudo fôrro
já vi inscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado [...].
(MELLO, in Porteira Oficial de Elomar, 2007).
No começo da canção, Elomar já exprime qual a sua intenção que, neste caso, seria tecer sobre os ensinamentos do eu lírico para se viver na modernidade. Esta lhe mostrou que a vida é bem mais que dinheiro. Ele então se apoia a bíblia sentenciando que todos os seres vivos são livres e, com isso, ele conclama a liberdade e o amor, como uma nova maneira de viver na modernidade. Em vista disso, cabe ao violeiro, segundo a canção, Amô que faz referência aos amores que encontra na sua caminhada, furria que seria a liberdade, viola para sonorizar o que será cantado e nunca dinheiro, visto que desfrutar de menos dinheiro, seria o mesmo que ter mais fortuna em relação à vida e possuir uma maior liberdade poética, uma vez que o violeiro não deve se preocupar com bens financeiros, já que a sua única riqueza é ser livre para cantar e seguir qual rumo queira.
Mediante a isso, o violeiro elomariano pode ser comparado ao segrel da Idade Média, este tinha como propósito ir de terra em terra desempenhando a função de trovador recitando e ou cantando suas composições, porém, enquanto o eu lírico de Elomar, como mencionado na canção supracitada, não tem preocupações com bens financeiros, o Segrel cantava por intermédio do dinheiro. Posto isso, pode-se dizer que Elomar é considerado um Menestrel, sendo este um bardo cujo desempenho lírico era tecer cantigas sobre histórias do seu povo e de lugares distantes ou sobre eventos históricos reais ou imaginário. Portanto, Elomar não se enquadra as características dos cavaleiros andantes, pois ele, segundo Simões, é “um peleador que persegue um ideal de mundo que valoriza as coisas simples, a natureza, as criações divinas. Sua cantoria traz à cena o homem rude do sertão, suas agruras, sua abnegação a um destino de luta e eterno recomeço” (2006, p. 29). Por isso, a cantoria elomariana reproduz os acontecimentos da sua realidade e, então, como compositor de suas canções, Elomar pode ser, também, comparado a um trovador, cuja função era compor cantigas para serem apresentadas dentro dos feudos. Diante desses fatos, as canções elomarianas assumem um papel divergente das características poéticas dos medievos no diz respeito à maneira de como era “poetado” na Idade Média.
Antes é necessário entender que as Cantigas de Amor são aquelas que expressam os sentimentos do eu lírico masculino pela mulher da nobreza. A senhora, assim chamada nas cantigas em questão, é quase elevada ao plano espiritual sendo exaltada suas qualidades e virtudes, consequentemente, ela é uma mulher que faz parte da aristocracia feudal. Já as Cantigas de Amigos evocam uma voz feminina que discorre sobre suas angústias, saudades e frustrações amorosas. Nelas são encontrados o amor real, a esperança pela voltada do amado e, às vezes, a representação da angústia pelo abandono. “Ao contrário da cantiga de amor, o sentimento aqui é espontâneo, natural e primitivo: a mulher que se entrega de corpo e alma a essa paixão incompreendida e acaba sendo abandonada pelo seu amado” (ALGERI, 2007, p.7). Como discorre Algeri, a voz feminina se encontra presente nesse plano amoroso, entretanto, Elomar inverte a voz do eu lírico como forma de expor o sentimentalismo de sofrimento do violeiro nordestino. Diferente da cantiga de amigo do Trovadorismo que canta a fala da mulher abandonada pelo seu homem, e este que sempre promete ficar ao seu lado, mas a abandona e a deixa a chorar, nas canções elomarianas, a amiga é quem parte e deixa o violeiro a sofrer e, para aliviar o seu sofrimento, ele canta sobre o abandono, mesmo que esteja na esperança de um possível retorno da sua amada. Assim como elucida Silva que:
Nessa vertente dialógica entre as vozes sociais do Nordeste e da Idade Média, insere-se a inversão do eu-lírico, ou seja, enquanto nas Cantigas de Amigo se supõe a fala da mulher clamando pelo homem, que por sua vez iludiu dizendo que a amava e ficaria para sempre ao seu lado e depois a abandona; nas cantigas de Elomar, a amiga é quem parte e deixa o violeiro a chorar/cantar passivamente esperando retorno da amada. (2014, p. 35 e 36).
Diante do que foi supracitado, o poeta evidencia o cotidiano do nordestino e o que antes era sofrido pela mulher nas cantigas trovadorescas é reelaborada nas canções elomarianas, pois agora a dor do abandono ressurge com uma voz masculina e quem sofre a perda do amor é o homem nordestino. Assim como é cantado na canção Cantiga de amigo:
Vão cantar louvando você.
Em cantigas de amigo, cantando comigo,
Somente porque, você é,
Minha amiga mulher,
Lua nova do céu que já não me quer.
Dezessete é minha conta,
Minha amiga conta
Uma coisa linda pra mim;
Conta os fios dos seus cabelos,
Sonhos e anelos,
Conta-me se o amor não tem fim
Madre amiga é ruim
Me mentiu jurando amor que não tem fim. [...].
Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros,
Iluminam a sala de amor;
Sete violas em clamores, sete cantadores
São sete tiranas de amor, para amiga em flor
Que partiu e até hoje não voltou.
(MELLO, Das barrancas do rio Galvão Oficial de Elomar, 1972).
Portanto, no fragmento da canção é possível analisar que apesar do nome ser “Cantiga de Amigo”, ela se diferencia do estilo paralelístico, visto que, nesse tipo de cantiga, costuma-se apresentar uma voz feminina e, entretanto, nesta canção tem-se uma voz masculina que se junta a outros cantadores na “Casa dos Carneiros” para louvar a amiga mulher que partiu. Assim sendo, Elomar apresenta uma inversão lírica, nela propõe a partida da amada e o eu lírico sofre o abandono. No seu sofrimento, ele deixa subentendido que até procurou sua amada, mas que ela já não o quer mais e afirma que ela mentiu para ele, pois jurava um amor eterno, mas que, mesmo assim, o abandonou e ele ficou a chorar/cantar ao redor de sete cantadores na sala da Casa dos Carneiros. Assim sendo, em uma análise comparativa com o trovadorismo, no excerto citado anteriormente, Elomar diz que louvará a sua amada em Cantiga de Amigo justamente para retratar a perda da sua amiga/amante, mas a voz que é apresentada na canção é masculina diferentemente de como era cantado na Idade Media que, por mais que fosse um homem que cantasse, o sentimento que era expressado na canção era de uma mulher que sofria pelo abandono do seu amado.
REFERÊNCIAS:
LITERATURA DE CORDEL E A MÚSICA CONTEMPORÂNEA / Nelvi Malokowsky Algeri; orientadora Elizabete Arcalá, São Paulo, 2007. Disponível no endereço eletrônico <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/810-4.pdf> Acessado em Setembro de 2019.

CORRALES, Luciano, A INTERTEXTUALIDADE E SUAS ORIGENS. Porto Alegre: Pucrs, 2010. Disponível no endereço eletrônico <http://editora.pucrs.br/anais/Xsemanadeletras/comunicacoes/Luciano-Corrales.pdf> Acessado em agosto de 2019.

MELLO, Elomar Figueira. CANTORIA 1 OFICIAL DE ELOMAR. Disponível no endereço eletrônico: < www.elomar.com.br > Acessado em agosto de 2019.

MELLO, Elomar Figueira. PORTEIRA OFICIAL DE ELOMAR. Disponível no endereço eletrônico: < www.elomar.com.br > Acessado em agosto de 2019.

MENEZES, Valéria Queiroz, A LÍRICA TROVADORESCA NA CANTORIA NORDESTINA: ELOMAR E A SAGA DOS VIOLEIROS. Trabalho apresentado na Universidade estadual de Santa Cruz – UESC e no V SETIL – Seminário de Teoria e História Literária – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, 2012. Disponível no endereço eletrônico < http://missdaisyarteeliteratura.blogspot.com/2012/09/a-lirica-trovadoresca-na-cantoria.html> Acessado em agosto 2019


MOISÉS, Massaud. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 1983. Disponível no endereço eletrônico < http://files.mundo-inteligente.webnode.com.br/200000006-d8c35d9c05/A%20Literatura%20Portuguesa.%20MOISES,%20Massaud.pdf> Acessado em agosto de 2019.

SILVA, Tatiana Cíntia da, O SERTÃO ENCANTADO PELO AEDO ELOMAR: METÁFORAS DA SAUDADE / Tatiana Cíntia da Silva; orientadora Jacqueline Ramos. – São Cristóvão, 2014. Disponível no endereço eletrônico <https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/11216/2/TATIANA_CINTIA_SILVA.pdf> Acessado em julho de 2019.

SIMÕES, Darcilia. LÍNGUA E ESTILO DE ELOMAR / (org.); Luiz Karol & Any Cristina Salomão — Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006. Disponível no endereço eletrônico: < http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/elomar2006_01.pdf > Acessado em setembro de 2019.

Capítulo 1: A CANTORIA ELOMARIANA: RESGATE LÍRICO DO AEDO MEDIEVAL EM UMA PERSPECTIVA DE DIALOGISMO; Artigo elaborado por Yuri de Abreu Santos (PIC / NELL / FPD); Orientadora Tatiana Cíntia Silva. 

Informações do autor: Graduando do Curso de Letras Português/Espanhol da Faculdade Pio Décimo (FDP), aluno-pesquisador do Projeto de Iniciação Científica (PIC)  através do Núcleo de Estudos em Literatura do curso de Letras (NELL), Linha de Pesquisa: Literatura, Regionalismo, Memória e Ensino, orientado pela professora Mestra Tatiana Silva.
E-mail para contato: yurideabreu3215@gmail.com

O dialogismo entre arte de cantar na Idade Média e as canções de Elomar Figueira Mello

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